Das coisas que eu queria ter dito, não disse, no entanto, por falta: de tempo, de lembrança na hora certa, de traição quando do instante oportuno. Não que esses sejam os únicos motivos – são os que vieram sem esforço ao papel. Enquanto os dois primeiros inevitavelmente me frustravam, a traição arrebatava-me. Ou seja, quando aquilo que eu sabia de antemão querer dizer subia até a boca e, se quisesse, podia ali mesmo vomitar: tinha tempo, espaço e tinha ânsia, mas eu engolia.

A dinâmica era tal: anotação existia em algum caderno, caderneta ou pedaço de papel qualquer – eventualmente, em notas do celular – e anotação rabiscada havia de pertencer à categoria do « querer ser dito », compartilhado… gritado a plenos pulmões do alto de um prédio, no meio de um palco para uma plateia estranha, ou com a cabeça cravada no travesseiro para amortecer a angústia. Ou… será que tudo que em anotação constava, dito também estava? E o freio dos lábios selados – às vezes entreabertos, em vacilo – era apenas a peça lógica daquilo que já havia sido desgastado, ficado apenas resto, desimportado? resguardando-me, enfim, de perder tempo?

Tempo… sempre o tive para perder, até mesmo tempo para perder, sempre tive. O que sempre me faltou foi vontade, paciência, inclusive, de investir meu tempo perdido naquilo que aparece para substituir o que dói. No subterfúgio que dilacera a verdade – ou o outro – na dor que evito em mim. A propósito, o que me rasga é o itinerário elusivo tomado por aqueles eles, e que, no mais inocente dos casos, os torna incapazes de encarar uma pergunta sem resposta, no menos, exaustos por contornar aquilo com o que não querem lidar – em ambos: os detém de me olhar nos olhos. Seus tempos… Fossem apenas suas vidas… Quanto a mim, gosto de olhar a dor e contemplá-la; delongar o olhar, sustentá-lo. Sustentá-la. Se a mera observação não a altera, sei que a engaja. Não elabora, não resolve, mas faz algo essencial: admite. E define prioridades. Acho que é uma relação com a resposta: onde você acha que acha a resposta. E se quer uma resposta.

Mas, agora, falar aquilo que constava em algum lugar – na folha em cima da mesa, marcando um livro, dentro da mochila, perdido em notas desorganizadas – tomava essa dimensão: a de ser perda de tempo. Como ânsia, vinha até a boca, embora, então, um segundo ponderando convencia-me: não era necessário falar. Se era algo que me convencia, esse algo também me confortava, como se soubesse que eu precisaria desse conforto. E, afinal, algumas instâncias de prévia experimentação haviam comprovado a eficácia da decisão. Em tais casos, eu havia sentido o meu falar como se estivesse fugindo de alguma coisa: quando uma onda se ia depois de vir, e eu não sabia o que fazer com o que tinha passado por mim (que havia tocado eu ainda não sabia como, não sabia onde), uma vontade de proferir palavras apropriava-se do meu corpo. Isto é, palavras seguras, dessas já registradas – não seguras a ponto de necessariamente fazerem sentido, mas pelo fato de palavras haver. Um punhado de palavras materializadas, mesmo que em uma ordem questionavelmente ordenada não mandada, de um jeito que me permitia ter uma vaga noção, um entendimento promissor, ou mesmo uma hipótese virtualmente irrefutável – o que determinava a diferença era apenas minha capacidade de convencer. A mim? Falar ou não falar era traição?

E configurar-se-ia como traição quando não se sabia, no instante, se querer dizer? Porque me dei conta desta outra categoria: das coisas que eu queria ter dito e não disse por não saber querer dizer. Tinham início com uma observação deveras genial que, então, logo se retraía (observações astutas não me costumavam faltar – constituem uma forma de perder tempo que muito me agrada – mas as geniais demandavam um raro mapa do infinito particular). Passava por um ciclo que se parecia ao do súbito surgimento de um imponente girassol no meio do vasto campo, que, no entanto, antes de cumprir a nobre missão de acompanhar o deslocamento da sua estrela no céu, murcha, cabisbaixo. Mas não creio que era por falta de substância que tais tentativas não vingavam. Não sei o que faltava; talvez o entendimento de que era digno, o sofrimento sofrido na presença de outro. E, assim, o não-saber-querer-dizer ficava limitado a apenas uma interjeição – heureca! – quando parecia, em retrospectiva, o fio solto de uma longa malha. Não, não está certo: isso é também verdade, mas, embora se possa dizer de certa profundidade, a intuição vai além.

A resposta para o questionamento que a exclamação abrigava já existia: eu sabia. E o freio dos lábios selados (às vezes entreabertos, em vacilo) era apenas a peça lógica daquilo que havia se desgastado.

Que está aqui, agora, eu já sei que não. Talvez por isso acatava meu próprio silêncio – se amargurada por não saber o que fazer.